Belisário Pimenta foi um eminente vulto da Cultura portuguesa da primeira metade do século XX. Tem perto de 1000 publicações para as quais, de um modo geral, foi convidado para a sua elaboração, e sendo que, para a publicação das mesmas, teve apoio em jornais, revistas, opúsculos, etc. Contudo, como adiante fazemos referência, e de acordo com o que ele próprio refere quanto à falta de colaboração, por ele solicitada, enfrentou algumas dificuldades com o seu Cancioneiro Popular de Miranda do Corvo, pelo que a publicação foi feita à sua custa, enquanto Autor (sumptibus auctoris) ([1]), mas só ao fim de alguns anos de investigação exaustiva.
Porém, para além destas circunstâncias, outras houve que lhe dificultaram, ainda mais, a sua vida pessoal; algumas descobrem-se, facilmente, no excelente Opúsculo ([2]) que recomendamos, sobre a sua biobibliografia, da autoria de um ilustre Professor Catedrático de História da Universidade de Coimbra ([3]); profundo conhecedor do seu espólio literário cedeu-nos, gentilmente, para publicação este texto valiosíssimo e elucidativo sobre Belisário Pimenta que anexamos no presente trabalho para o seu enriquecimento e como mais uma oportunidade oferecida ao leitor. E, porque o material bibliográfico se encontra arquivado na Biblioteca Geral daquela Universidade, houve que obter do Excelentíssimo Diretor da Biblioteca Geral a necessária autorização para a reedição do Cancioneiro Popular de Miranda do Corvo, nas presentes condições, que nos honrou com a amabilidade de escrever a expressiva nota com abrimos este nosso trabalho.
Assim, nesta reedição, destinada a homenagear Belisário Pimenta, pretendemos tecer algumas breves considerações sobre o longo tempo de elaboração desta obra e sobre as dificuldades consequentes à sua publicação.
1º O Cancioneiro, escreve o próprio Autor, levou décadas a ser concluído. Na realidade, só depois de decorridos 25 anos após o seu início, é que o prefácio foi escrito, ou seja, 8 séculos e 7 anos após a fundação de Miranda (Carta de Foral de 1136), isto é, em 1943 (ver nota da quadra 6). A sua publicação aconteceu 10 anos mais tarde, em 1953.
2º-A edição foi de apenas 50 exemplares, numerados e rubricados pelo Autor, que se obrigou a vendê-los, pessoalmente, aos seus amigos e estes, por sua vez, aos seus próprios amigos, também. Cada exemplar, segundo nos informaram, custava 50 escudos, o que na altura era bastante dinheiro, mas que se podia considerar uma quantia simbólica, face ao seu valor cultural. Em Miranda do Corvo, entre as poucas pessoas que adquiriram a obra, encontrámos Arnaldo Cosme, da Farmácia e o Professor Augusto Paulo (cujo exemplar utilizámos para este trabalho). Porém, foi o Dr. Carlos Pereira Batalhão, Conservador do Registo Civil, quem mais ajudou à venda.
Belisário Pimenta tinha razões para se lamentar por não ser atendido por “bastantes pessoas, aliás, de espírito cultivado”. Várias vezes se questiona “Porquê?”... “Por desconfiarem, por qualquer motivo oculto da minha parte, que lhes poderia ser prejudicial, ou pelo menos, aborrecido”. Sentia-se também desgostoso pelo mutismo a que fora votado; o que, em parte, parece persistir até aos dias de hoje, achando nós que nos cabe uma certa dose de culpa, imperdoável, na medida em que, sendo mirandenses, não divulgámos amplamente a sua obra notável.
No texto do Cancioneiro Popular de Miranda há pequeninas imprecisões que, a nosso ver, resultam do muito tempo que demorou a sua elaboração; apenas, e a título de exemplo, referimos o caso dos “chafarizes da vila”; de facto, em frente à botica Bastos, existiu uma fonte muito antiga, anterior a 1919 ([4]), que era conhecida por “Fonte dos Amores”; hoje, no seu local e com a mesma data, está um chafariz, com um fluxo constante de água, a chamada “Fonte do Chafariz”; este foi transladado do Largo do Pinheiro, mais tarde chamado Largo de Serpa Pinto, posteriormente Avenida José Falcão e, atualmente, Praça do mesmo nome (ver nota da quadra 8); terá sido retirado daquele local para aí ser construído o edifício da Câmara Municipal, a qual, antes de 1919, funcionava no velho edifício no referido Largo do Pinheiro, onde hoje funciona o Turismo.
Se o autor tivesse sido, tal como nós, aluno das escolas primárias adaptadas da antiga residência paroquial, que hoje é a biblioteca Miguel Torga, talvez não tivesse dúvidas em empregar a palavra ”bronze” na nota da quadra 23; costumávamos ir beber água àquele chafariz “moderno” que tem duas bicas de bronze em duas faces opostas, das quatro que compõem um robusto e belo paralelepípedo de pedra de Ançã; mas, ao contrário das fontes “antigas,” estas não têm as elementares bicas de pedra, adossadas em muros ou em paredes ornamentais; têm antes a forma de cachimbos virados para baixo; na parte de cima destes tubos metálicos, há um orifício redondo com um rebordo circular, por onde a água repuxa para se beber, quando tapamos a saída inferior com a mão; é uma forma prática, embora pouco higiénica.
Outras análises, mais completas e de outra índole, ao conteúdo deste Cancioneiro e às inúmeras obras do Autor, poderiam vir a enriquecer a Historiografia de Miranda do Corvo, caso existissem estímulos criados pelos responsáveis da Cultura nacional e local.
Foi na década de 1940 que travámos conhecimento com o Senhor Coronel Belisário Pimenta, por intermédio de uma sua irmã que visitámos em sua casa na Rua de Tomar, em Coimbra, enquanto estudante ([5]), e depois em sua casa, na Vila de Miranda, onde a família tinha propriedades que foram de seu avô materno Manuel Caetano da Silva, natural da Freguesia do Salvador.
Daí que este nosso propósito de publicar a presente reedição se tenha alojado, de forma subliminar, na nossa mente, desde os tempos áureos da nossa juventude; porém, só agora, e finalmente, foi possível este trabalho, graças à colaboração e ao empenho pela divulgação cultural das Edições MinervaCoimbra.
Já em jeito de conclusão, consideramos que o conteúdo deste precioso Cancioneiro merece ser conhecido não só por todos os habitantes dos vários lugares do nosso concelho, citados nas quadras [6] como também divulgado dentro e fora do País. Seria, assim, prestada uma verdadeira homenagem e uma justa forma de reparação (ainda que a título póstumo) pelos muitos incómodos sofridos por Belisário Pimenta, decorrentes da tacanhez ou falta de visão de alguns cidadãos, seus contemporâneos. Era normal que estes manifestassem a sua relutância em o aceitarem e em considerarem a sua valiosíssima obra, devido ao seu corajoso, irreversível e conhecido “anti-situacionismo” em todas as circunstâncias que, em sua consciência, atentassem contra os direitos universais de cidadania. Numa visão atual, assaz benévola, alguns seriam hoje apenas “desafetos” e ”medrosos” e não ousariam, sequer, arrogar-se seus vizinhos em termos de Cultura
Tem-se conhecimento de que aqueles eram tempos difíceis para a Política, para a Cultura, etc. e ruins para o Povo; políticos que padecessem da síndrome de Júlio César (homem que ao tornar-se cada vez mais poderoso os inimigos, em crescendo, procuram abatê-lo), depressa “faleciam desta vida”; igualmente, vultos da Cultura contaminados por síndrome semelhante [7] passavam a ser tidos por “não-gente”.
Assim, quando o Cancioneiro Popular de Miranda do Corvo e os outros seus trabalhos, de natureza histórica e literária, forem editados, daremos, finalmente, um valioso, ainda que tardio demais, contributo para o merecido reconhecimento da grande estatura intelectual, cultural e moral de Belisário Pimenta com quem o Concelho de Miranda tem estado em falta.
Miranda do Corvo, 8 de setembro de 2012.
Edgard Panão
[1] O Cancioneiro Popular de Miranda do Corvo começou a ser organizado em 1918 e a ser anotado para publicação, em 25 de Junho de 1940, mas só começou a sair, em 1949, nas 48 páginas do I volume da Revista Terras do Mondego de António da Rocha Madhail, por parcelas, como se segue: pág. 157-162 (6 págs.); pág. 215-236 (22 págs.); pág. 303-322 (20 págs., até à quadra 208). Como aquela Revista acabou, “fez-se composição do resto”, isto é, das 69 páginas seguintes, das 117 do Cancioneiro cuja última quadra, (na pág. 106) tem o nº 572 em vez do nº 574 desta reedição, por, na pág. 86, haver 3 quadras com os nºs 374, 375 e 376.(Ver Bibliografia de Belisário Pimenta, Edição da UC Coimbra-1974.)
[2] Belisário Pimenta, historiador António de Oliveira - Coimbra 2001-2002
[3] António de Oliveira, << Belisário Pimenta, Historiador>>, in idem, Pedaços de História Local, vol.II, Coimbra, Palimage/Centro de História da Sociedade e da Cultura, 2010, pp. 403-440.
[4] Ver ”Reconstituição das Famílias da Freguesia do Salvador de Miranda do Corvo”, de Edgard Panão -Edição do Mirante 2002, páginas 106 e 607.
[5] Ver “ Trautos de Miranda” de Edgard Panão - Edição MinervaCoimbra, página 164
[6] Ver “Covseiro de Myranda” de Edgard Panão - Edição MinervaCoimbra, págs. 137 a 141
[7] Quem hoje se der ao trabalho de ver as apresentações, aparentemente benévolas, de livros na TV, descobre a persistência atual desta síndrome de “não-gente” que continua a afetar os autores de fora de Lisboa; ela é, ainda, mais visível nos meios pequenos de província, culturalmente, bisonhos resultante do secular desinteresse de alguns responsáveis (autarquias, escolas, meios de nível regional, mecenas, etc.) que “Cismam que Cultura é desperdício”; e então, nos casos onde há fortes núcleos em que pululem os pícaros, os indivíduos ínvidos, os iletrados ”e algum“ demasiado reverenciador do exótico pelo forasteiro” , ao desfavorecerem os autores locais ,o ambiente social degrada-se, culturalmente, na medida que perde a força da sua autenticidade genuína.