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Os Trautos de Miranda

Os Trautos de Miranda

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Bio-fácio

 

Como um antigo professor aceitou escrever na primeira pessoa alheias memórias ao ver-se preso pela curiosidade imensa que lhe despertou o humanismo às vezes raso singelo outras vezes brilhante de um seu conterrâneo e colega Joaquim de Miranda; sentiu-se em perigo de ser incapaz de tal tarefa ao ser solicitado a servi-lo como uma espécie de barriga de aluguer ou, melhor, cabeça de aluguer para fazer, como um simples escriba, o registo em pequenas crónicas de alguns pedaços de tempo da vida daquela pessoa que era descarregada de posses e com dotes de inteligência; mas era incapaz, ao alinhar a escrita dos seus conhecimentos, de associar de forma equilibrada e bem medida, uma auto-análise personalizada para poder legá-la ao futuro evitando que lhe aconteça o que acontece a tantos outros homens cujas mortes costumava comparar à queima de livros cheios de experiências ricas de ciência cultura e de valores que se vão perdendo ou truncando em todas as comunidades sem honra nem proveito para os seus vindouros; por isso, ninguém os devia olvidar e obrigá-los a desaparecer da sociedade porque há pessoas, ou grupos embora restritos, para quem eles são bons, honestos, cumpridores, verdadeiros amigos e nem sequer nunca ludibriaram ninguém; Miranda dizia-se levado a concluir que para uns o que é bom, isto é, a noção de bem, tem como contrapartida o mal: o bem, aliás como o mundo não é perfeito, tanto pode justificar por exemplo o uso da liberdade do homem como o abuso dela; até se costuma aceitar o bem e o mal como valores absolutos só que há, tendencialmente, nos humanos um grave desequilíbrio discriminatório a favor do mal e daqui as revoluções, as marchas de protesto por não satisfação das massas que aspiram à utópica  situação da não existência da noção do bem e do mal e o homem ser, apenas, homem sem qualquer tipo de valores, de discriminação positiva ou negativa. Estas pequenas crónicas são de memórias de um homem tão vulgar que de tanto sê-lo julgava-se um cidadão anormal; desejava que fossem escritas antes que adoecesse com maleita crónica e ficasse achacado de uma saúde débil e já antevendo o longínquo crepúsculo da vida terrena e os incontornáveis alvores da aurora eterna; dotado de recursos culturais próprios, que materiais também não lhe faltavam. Joaquim de Miranda mandara chamar o seu escriba para se juntar a si no Café do Apalpa, em Corvo Preto; tratava-se de um belo café remodelado com pastelaria e padaria por venezuelanos fugidos das mais que previsíveis carícias justicialistas dos esbirros do tecnocrata roncador; Miranda era mais conhecido por senhor doutor e ainda por outros títulos honrados que uma vida árdua de trabalho honesto e arriscado disperso por esse “mar de longo” lhe grangeou num vasto espaço de pequenos e grandes mundos onde viveu e conviveu de alma sã; dotado de aparentes laivos de ingenuidade irónica, às vezes, a raiar o cinismo, nunca se perdeu a sua memória da Vila; era celebrado tanto por pessoas de mediana cultura como pelos que com estes se elevavam a si mesmos acima da média, isto é, os expoentes máximos da inteligência humana que com ele coexistiram e influenciaram, ou não, ou contrariaram o seu pensamento: no primeiro contacto com este seu interlocutor o escriba descobriu que não se tratava de “qualquer ninguém”, mas sim de um homem de sólida formação académica e cultural que na terra onde regressou, quase no fim da vida, era muito mal conhecido; a proposta recebida, resumindo, era da sua parte lhe redigir de modo à publicação um trabalho sobre uma, talvez primeira, parte das suas memórias que valesse a pena serem divulgadas aos seus vindouros para imaginarem como era o estilo de vida humana que era feita, regra geral, mais especialmente para a grande maioria da população portuguesa, muito complexa feita de dureza de rigores e compromissos interpessoais assumidos no trabalho e na família, requerendo esforços de pragmatismos versus sonhos ingenuidades; violência mal contida; relações sociais desiguais, enfim, vidas humanas, mormente a da mulher submissa, recalcadas com machismos e tabus à mistura, etc.; de fora dessa população ficavam uns poucos aos quais era possível viver bem no decorrer no século XX até a partir dos 80 anos; é nesta altura que começa a nascer uma geração nova, a dos filhos mimados que hoje estão a entrar no mercado do trabalho a substituir as gerações de seus pais dos quais discordam, em princípio, sobre as novas formas de trabalho que tem de ser hedonista que lhes dê prazer e não escravo; a sua educação trouxe-lhes de tudo que antes não havia: estímulos demais, recompensas pródigas, tecnológicas de acesso fáceis, férias, viagens, entretenimentos; trata-se de uma espécie de nova raça que estuda, não tanto para se preparar para o futuro que querem não seja igual ao passado dos seus pais, mas para conviver intensamente e arranjar novos amigos; este hedonismo dos filhos contrasta com a não rara rigidez, austeridade e contenção de seus pais para lhes dar tudo o que agora têm, de maneira que a adolescência deles de hoje ameaça de só terminar (nestes jovens) aí pelos 30 anos de idade, o tempo de gozo das prebendas paternais; por isso, não lêem estas modestas mnemo-crónicas que se as lessem enjoavam-nas, mas quando chegarem aos 60 anos talvez então lhes venha a curiosidade de saber como foi viver no tempo da formação de seus pais e como eles tentaram reorientar os seus próprios filhos, uma nova geração uma raça diferente. Neste encontro de café os dois aceitaram o contrato e o tratamento das memórias, ou os trautos como ironizava Miranda, mas com uma condição prévia ele próprio invocaria o seu passado de forma genuína, e sem preocupações de modernizá-lo, desde o primeiro acontecimento que o impressionou irreversivelmente e a partir do qual, e pela mesma razão, todos os acontecimentos posteriores seriam relatados cronologicamente de preferência mas não necessariamente, por razões de valorização editorial; quer dizer que das memórias os factos e facetas iguais ligadas ou desligadas ou repetidas podiam ser implicitamente tratadas num dado momento como transversais a toda a sua longa existência; esta condição era tão óbvia e tão ampla como indispensável para atingir os seus objectivos que no fim se podem traduzir no registo de pequenas memórias cronicadas; contudo, parecia haver necessidade de se começar as suas memórias um pouco antes de aí de pelos seus três anos de idade em que se lembrava da figura de um morto no seu caixão; Miranda argumentou que haveria necessidade de dar ao registo feito, uma ideia o mais possível concreta de três factores:1- o das gónadas da sua família;2- o do campo aleatório de sua longa vida ;3- o do ambiente físico cultural em que nasceu ; estes dois últimos são radicalmente diferentes do tempo presente: numa consensual cedência, absolutamente normal e justa decidiram começar pelo nascimento: onde, quando e como Mirada veio ao mundo e registar os factos da vida mais exíguos de reminiscências com profundidade desigual consciente a partir dos primeiros anos de vida até ao fim da primeira infância que foram passados, quase exclusivamente, no seio familiar; quer dizer que as memórias com vista a uma maior contextualização genético-cronossociológica deviam ainda ser antecedidas de uma brevíssima recapitulação abreviada dos antecedentes familiares paternos. O interlocutor pensou na melhor maneira de compreender e explicar a influência na formação sistemática da sua personalidade, no que respeitasse ao aleatório do seu mundo e da família; então, ficaram logo combinados neste primeiro encontro os outros seguintes que haviam de decorrer regulares, mas com uma preparação prévia, de tal maneira que Miranda tinha de vir preparado para evocar o seu passado em família genuíno e consigo; havia de procurar trazer alguns textos de histórias publicadas, ou não, pelos, ou sobre, os seus antepassado ,de cartas  etc.; teria de vir prevenido com um pequeno gravador e uma forte dose de paciência e de disponibilidade quanto bastasse para se ouvirem e dialogarem até ao limite do razoável em cada encontro a decorrer alí numa mesa reservada, fora das horas de ponta de serviço, no sobre-chão de sobrado de madeira rodeado de uma bela balaustrada de pau-rosa ao qual a classe fina dos clientes  acedia por dois belos degraus de mármore róseo no Café Flor de Santa Esmeralda; era este o nome de rebatismo do Café do Apalpa que galdérias e moinas, depois de lhe terem dado aquela alcunha, acabaram por desaparecer e formar o seu círculo em novo epicentro, o Café Piolho, à beira do rio. Miranda lembrava-se do que a sua  mãe lhe contou sobre o seu nascimento e de na sua consciência ter guardado para sempre a ideia de que logo ali no parto foi marcado para ser diferente da maioria dos cidadãos, na sorte, no amor, no prestígio social e em tudo que, normalmente, é bom para os outros; a mãe tão chorosa de dores durante o parto, como ansiosa estava por saber se era menino ou menina porque era o primeiro filho, casada que estava há nove meses; a parteira pegando na luz apontando-a para a entrada do túnel agora local de dor olhava para ver quando aparecia a moleirinha do seu herdeiro, mas  herdeiro de quase nada porque no princípio de casados rica não era senão de bons e afectuosos sentimentos e de profunda dedicação àquele filho, ao marido e aos pais que tinha de cuidar ,mas não ali, em casa tão pequena, e agora cheia com mais um; no meio de tanta dor a criança começou a aparecer de pés para a frente que bom sinal não seria; ao cair cá fora no mundo o menino, era um menino, trazia o cordão umbilical com voltas ao pescoço e por isso, perigoso seria demais se em poucos segundos a experimentada assistente das parideiras não o desembaraçasse logo e não o mergulhasse em água tépida; e o resto do parto correu normalmente só que ficou logo a dúvida se a parteira teria sido tão rápida quanto o suficiente para livrar o menino do cordão que lhe provocava falta de ar e que podia provocar lesões no seu pequenino cérebro, dúvida que haveria de durar para sempre uma vez que a ciência não o podia aclarar logo visto que não havia condições científicas nesses tempos para tal diagnóstico; era o tempo das farmácias à base das pílulas e das hóstias entranhadas de princípios activos que lhes metia dentro o farmacêutico, análises não se faziam nesses tempos como agora em que, por exemplo, a Josefa do Catarino leva ao médico de família uma papelinho escrito pela vizinha a pedir análises para tudo porque vale mais prevenir do que remediar, recomendando a vizinha que se queixasse muito ao médico para que este faça de contas que acredita nos seus padecimentos e lhe possa passar aquelas receitas que são as indicadas; é que há médicos, e a vizinha sabia disso ,que calmos e serenos costumam dizer a pessoas deste tipo hipocondríacas compulsivas que não valia a pena análises, que se tranquilizassem porque as análises não curam:.Para concluir, só saberia se o parto deixara algumas sequelas, à medida que a criança fosse evoluindo e as manifestações da sua existência lhe conferissem o grau de anormalidade ou normalidade; Miranda confessou que durante toda a vida se sentiu ter, na comparação com os muitos colegas da escola, uma inteligência maior que a maioria deles; de facto era um jovem incómodo devido ao despeito que sofria por ser o melhor, pois isso, ele mesmo chegou a pensar que devia ter aprendido a saber lidar com esse epí-fenómeno na Escola, mas nunca o conseguiu na vida porque, talvez, fosse beneficiado do acidente do cordão umbilical que lhe deve ter acelerado a corrente sanguínea e oxigenado bastante os seus neurónios; em contrapartida parece que não foi dotado de uma espécie de freio psicológico para o bom uso dessa bendita aceleração e às vezes, por isso, não era atreito a refrear os seus pensamentos e afirmações; não era raro dizer para consigo: porque estranha razão hei-de eu ser sempre inconveniente nas minhas ideias e afirmações junto das pessoas que me rodeiam (?); pelo conhecimento das ideias que forem sendo relatadas em suas memórias ver-se-á que Miranda foi, não por defeito, mas por feitio, assim toda a sua vida; nunca ou quase nunca afinava o seu pensar e expressões com as ideias tidas adequadamente correctas mesmo em religião, em política ou noutras quaisquer ideias humanas e haveria de morrer assim um dia sem nunca ter conseguido emendar-se acabando quase sempre por dizer aquilo que os outros pensavam, mas não se atreviam a dizê-lo como ele, ás vezes de forme menos conveniente, sobretudo, no feminino; mas anotado que fique desde agora e se proclame bem alto que  isto nunca o impedia de estabelecer contactos pessoais directa ou indirectamente com indivíduos de todos os extractos sociais e se deleitava até a ruminar e a desfrutar os pensamentos deles quando os via escritos em livros feitos no computador; alguns desses com mais de dois quilos de peso, a maioria cheios de plágios, de barbarismos, de frases feitas e fotos para entretenimento; alguns destes pensamentos interpessoais, em seu critério, valiam a pena só para ponderar sobre uma melhor compreensão do mundo e da vida: a sua, a dos pobres ,a dos ricos, a dos poderosos, quer da política, quer de dinheiro; mas era com estes que mais se preocupava e ocupava por duas razões essenciais: primeiro, porque  trabalhar para gente remediada e desconhecida sabia-se que era um fraco negócio; segundo, porque quem não conhece bem os profissionais do dinheiro ou do mando arrisca-se a ser comido por eles, pelos seus asseclas ou pelos pedigolhos com a treta de cartão de votante partidário; Miranda fazia questão de relevar que teve sempre boas condições físicas, morais e intelectuais e era, relativamente, bem apessoado para conviver com estes figurões, embora sempre no fio da navalha, coisa que aprendeu quando, com sete anos, viu no terreiro da feira um funâmbulo em cima de uma corda aérea bem esticada; admirava sinceramente aquelas pessoas, sobretudo, as mais carentes que em sua maioria poucas condições tinham para o exercício da critica aos poderosos já que precisavam deles para se empenharem e viverem e resolverem problemas pessoais e familiares com grandes custos e poucos recursos materiais e financeiros; como não tinham tempo para pensar não se deixavam arrastar por  umas quaisquer ideias superiores que não dominavam e pensavam para que serve pensar ,se isso só  agastaria as pessoas ricas e inteligentes; segundo o pensamento de Miranda nenhum extracto da sociedade pode continuar assim descriminadas por mais tempo porque a biosfera humana inteira é propriedade de todos os homens e a ela todas as pessoas devem ter acesso à cultura e ao bem-estar sem distinção; só assim cada cidadão não poderá evitar, por exemplo, que a sua liberdade termine quando termina a liberdade dos outros sofredores de qualquer descapacidade de lutar; não se pode privar um indivíduo do essencial da sua vida a liberdade política, económica, social e religiosa: Quase no final do primeiro encontro Miranda relatou o tópico do encontro seguinte com vista a dar, na primeira pessoa, uma ideia global da sua personalidade, de modo a haver de ambas as partes, um bom cumprimento dos trautos. Assim começou Miranda: primeira vez que regressei ao lugar onde nasci foi num dia em que fazia anos, viemos ambos, eu e o meu pai, no velho Ford pelo caminho que  lhe causava uma certa tristeza porque fora aquele caminho que meu pai tomara quando dali saiu, contra a sua vontade devido à insustentável pressão de culpabilidade de pai putativo, agravada pelas pessoas que confundiram a própria confusão, como veremos adiante; o feitor que nos esperava e nos recebeu à chegada era já outro que não o antigo da Quinta quando ali nasci; logo deu mostras de grande alegria e de alguma curiosidade ao conhecer o meu pai, pessoalmente, pelo tanto que dele ouvira contar que até lhe parecia tratar-se de uma história própria para o libreto de uma Ópera a imitar a Cavalleria rusticana de Mascagni, tais seriam os contornos românticos e trágicos de honras feridas que pode resumir-se assim acrescentada de mais uns pormenores significativos para enriquecer a circunstância da narrativa saída da boca do feitor: No ano de 1934, chegou à Quinta com a sua mulher jovem como ele um moleiro vindo para a Quinta de propósito, já que no ano anterior o moleiro se tinha finado; tratava-se do moleiro mais jovem da Fábrica de Farinhas Massas e Bolachas cujo edifício está ao fundo do Parque na cidade; tinha 20 anos, ia fazer 21 em Junho; era divertido, dinâmico, alegre com a saúde a transparecer-lhe no rosto e no gesto vigoroso e com ar bem apessoado, qualidades estas demasiado contrárias às daqueles homens braçais sorumbáticos que trabalhavam na Quinta que se fossem perfilados junto a um muro escurecido mais pareciam os personagens de uma pintura pré-renascentista sem profundidade humana ou paisagística; o senhor da Quinta que estivera no Pará quando havia festas na casa Grande lá para depois da meia-noite dos dias quentes de sábado, ou de festa, mandava que se abrissem as grandes portas sacadas para que no terreiro a música do Salão de mármores, dourados e cortinas se ouvisse e o povo trabalhador pudesse dançar; então a orquestra começava a privilegiar na sua actuação apenas tangos, màrchinhas, passos dobles e o fandango ribatejano, às vezes, porque estava na moda; de fora do programa musical ficavam no resto da noite a valsa inglesa, o pas-de-quatre, a polka e outras músicas cheias de salamaleques dos Salões burgueses próprias de gente grande que nem se apercebia que se não fossem aqueles presumíveis burros, animais de carga e brutos dançantes no terreiro, a arrotearem na Quinta, o pão do dia seguinte, uns e outros morriam todos à fome; mas aquela espécie de rascuvanço, isto é, o baile saloio tinha a vantagem de limpar por momentos as pobres almas do rancor da incomodidade do frio e do calor abafante de suas pobres casas e, quantas vezes, da fome que o mísero salário da jorna não chegava para comprar tanto pão necessário para os filhos que eram demais dos muitos casais de obreiros a quem o Senhor pagava uma côdea; o moleiro era descendente de uma família assaz honrada e muito antiga era uma pessoa oblativa de sua natureza e por isso não só fiava a farinha necessária para o pão quotidiano dos mais carecidos, sem lhes pedir sequer qualquer aval; mas muito mais do que isso, nestas festas animava e alegrava os corações de toda a gente a dançar, vivamente, aquelas “modas” com qualquer moça que estivesse nas rodas formadas por pessoas em cujos corações, fora das festas, minguava a alegria e felicidade de viver; a mais bela jovem sempre presente naqueles e noutros bailes das redondezas era uma empregada de dentro da Quinta que tinha os mesmos 18 anos os mesmos da neta dos Senhores; quando esta se ausentava iam para seu quarto, as colegas instigavam-na a vestir os seus vestidos e riam-se ao espelho com ela, enfiavam-lhe as meias de fio de escócia ou de seda, calçavam-lhe as botinas, passavam-lhe o rouge e o pó de arroz e a Maria José, assim se chamava a jovem empregada, ficava mais elegante e mais senhoril que a neta da Senhora; afinal parecia até que quem merecia também ser filha era ela; havia ainda um seu colega, um jovem criado de dentro, muito solícito e sempre colado ao Senhor a segui-lo para todo o lado, mal se mexesse de tal forma era solícito que lhe deram a alcunha do “três pernas” e por ser muito magro, com a cabeça sempre curvada, devido às reverências ao patrão, também, lhe chamavam o “Bengala”; fora criado na Quinta desde pequeno; os seus pais abandonaram-no aos 6 anos por ser débil de saúde; era filho de um casal de ratinhos da Beira que, de regresso das ceifas do Alentejo, abandonaram o seu transporte, que era feito em vagão J, na Estação da CP mais próxima e caminharam a pé na esperança de encontrar pelos caminhos pequenas quintas onde ficassem a trabalhar para fugir à fome crónica dos invernos frios em seus torrões natais; aqui trabalharam durante três anos; mas, de certo saudosos da companhia da sua querida miséria, um dia ainda de noite, partiram com os outros seis filhos, não se sabendo porém por que caminhos, de modo que não os puderam seguir e entregar-lhes a criança abandonada; resumindo: o “manipulador de farinhas”, (eufemismo de moleiro) também deram essa alcunha ao seu pai como distinção, juntamente com a menina Maria José da Quinta e, mais tarde, com o “Bengala”, eram quem mais alegrava os populares que se juntavam nas rodas das danças da Casa Grande e das festas em dia de Santo dos lugares em redor; mas, certo dia casaram a menina Maria José com o Bigodes que era um Guarda-freios da Carris de Lisboa de aparência façanhuda, também filho de rabusanos que tinha o hábito de vir de visita à Quinta de vez em quando; o casamento foi em Fevereiro de 1935 e ele partiu para Lisboa sozinho até arranjar casa, o que estava custoso de acontecer; num dia de Setembro daquele mesmo ano de 1935 às 7.50 h nasceu uma criança com 3.600 kg, na casa do moleiro e às 8.40 nasceu também um menino com 3.600kg que era filho da Maria José da Quinta agora em casa dos pais a viver fora dos muros do Solar; ambos os recém-nascidos tinham covinhas na cara, cabelo preto farto, rosadinhos de rosto, de carnes muito saudáveis e, até à primeira vista ,eram um pouco parecidos,  tanto que seriam quase “cópias”; naqueles primeiros dias a parteira que era a melhor aparadeira profissional das redondezas sabida e previdente, a quem a partir do primeiro dia visitava as parturientes para lhes dar os parabéns e desejar felicidades, começava por dizer que seria talvez por aquela Lua ser a mesma de ambas parturientes que fizera as crianças tão parecidas e que o menino do moleiro nasceu com nove meses, mas o outro era prematuro e nasceu com apenas sete benza-o Deus; então começou um cochicho de raiz maldosa e persecutória, naquele meio rural, de que devia haver ali, face às grandes parecenças, talvez, um único pai biológico e não era difícil imaginá-lo! Isto era grave que quando chegasse aos ouvidos do Bigodes logo estranharia ter um filho apenas de sete meses , mais a mais, constando que era demasiado parecido com o filho do moleiro; então a mulher deste, para fugir às comparações mais perigosas que maldosas, resolveu retirar a “sua cópia” para longe dali para onde o filho foi baptizado com o nome de Joaquim, na Sé Velha, em Coimbra, como consta da sua Cédula Pessoal; as coisas não havia maneira de acalmarem pelo que se notava uma crescente má vontade ciúme e inveja contra o manipulador de farinhas (moleiro) por parte de uns senhores “caipiras” que se sentiam castrados com a presença daquele homem amável um tanto irónico, quanto espirituoso e carismático; a esposa muito cristã em seu justo parecer julgou que também seria de melhor critério tirar o “suposto original “ de ao pé da “outra cópia” e partiram para viverem noutra terra pouco distante numa noite em que havia quase dois anos que chegaram à Boiça e durante os quais o moleiro mostrou àquela gente que para além do frio da fome e da exploração patronal, havia muito mais que a humanidade lhes poderia oferecer como o amor a alegria da vida a beleza e alguns prazeres embora fugazes por insustentáveis, tendo por base a vida vegetativa que os abrigavam a levar. Naquela noite de 26 de Abril de 1936 chegaram à nova morada e ali se juntaram ao filho forçosamente exilado por força da inveja e da calúnia de gente má que não perdoou ao moleiro o deslize que lhe atribuíram em sua mocidade. Quando o feitor terminou a sua narrativa que incluiu  o meu nascimento tempestuoso  eram passados 20 anos; era o dia das inspecções militares dos mancebos onde estaria também meu irmão putativo; a dado momento, no fim, meu pai interrompendo o feitor perguntou: afinal em que pé ficou aquela questão de se saber quem era o pai do filho da Maria José(?), o feitor reatou e  prosseguiu que ela tinha fugido do Bigodes que, cheio de ciúmes, a maltratava e ao filho e veio para aqui para junto dos pais; entretanto fugiu para a Beira com o tal criado ratinho o “Bengala” envergonhado, repelido e desprotegido, resolveu fugir para parte incerta com a mulher desquitada e o filho desta; e do progenitor  “verdadeiro” do filho de Maria José  , nunca mais houve notícia e regressámos a casa com o meu pai emocionado e eu não “apurado para todo o serviço militar devido ao “índice de pinhê",  e a umas mais que duvidosas cunhas que me salvaram da tropa que a felina guerra do ultramar viria aí com pouca tardança. No final deste primeiro encontro levantaram-se e ao sair daquele requintado lugar de trabalho Miranda, ao dirigir-se à caixa de pagamento, olhando ao mesmo tempo para o chão e para o professor e puxando pela carteira foi-lhe recomendando vivamente que em todo este trabalho combinado queria que estivesse bem patente que da sua parte havia todo o empenho em, criar um modelo novo para guardar em memória a sua vida e outras vidas passadas valiosas em si mesmo feitas de pedaços de tempo e de espaço consciente embora que eventualmente em parâmetros semelhantes; as vidas de hoje são diferentes, como serão as de amanhã, antes de todos acedermos à vida eterna feita de tempo imensamente infinito mas em espaço nulo e misterioso, paradoxo por carência de respeito pela lei da relatividade; ao dispensar o espaço que é também imensamente infinito e que não conta para a vida eterna das almas a última recomendação que Miranda fez foi que as suas memórias deviam ser narrativas, se possível, simples, porém com o conteúdo rico de ideias circunstâncias válidas, etc. porque  assim como havia medicamentos cujo suporte era, por exemplo, a água destilada, na qual se introduziam os princípios activos para entrarem no corpo humano, assim também estas narrativas seriam a “água destilada” que servia para depositar na memória das gentes de hoje e do futuro, os traços essenciais de uma época passada, a sua, com os seus valores, circunstâncias, ideias, etc.; quanto aos conteúdos, que não se estranhasse que, apesar de Miranda ter pertencido a um geração cujos indivíduos de ambos os sexus lutavam contra certa castração política, económica e, sobretudo, sexual a que era sujeita, se desse  demasiada ênfase ao sexo, ao amor ,à relações amorosas entre jovens, já que tudo se deveria fazer para acabar com o tabu do sexo que parece ter origem num lapso: vamos imaginar, no Paraíso, Adão e Eva nus, sem as parras pudendas, diante do Criador a quererem saber para que fim os tinha feito assim, que se fosse só para a função urológica bastava pôr-lhes uma torneira; quando Adão sentiu, pela primeira vez, os impulsos sexuais à vista do nu integral de Eva, agarrou-a e ambos comeram a apple logo ali na presença de Deus que é omnipresente e lhes deu o castigo de os atirar para o mundo sem que lhes desse um simples bula sobre o comportamento sexual correcto e adequado; e eles tiveram que se desenrascar como os nossos avós, nossos pais e o próprio Joaquim de Miranda, mormente, estudante de Coimbra, como adiante se verá nas páginas deste trabalho . Assim se assentiu sobre os trautos, nesta memorável reunião no Café Santa Esmeralda, no ano da graça de dois mil e sete estando, os signatários em pleno uso das suas faculdades físicas, mentais e morais exigidas para cumprimento integral dos mesmos trautos de Joaquim de Miranda de seu título académico-profissional e de nome completo, Joaquim Amador de Miranda, professor licenciado. O resultado do encontro, aparentemente, insólito são as crónicas que se seguem na primeira pessoa, mas só as que vem depois da do seu nascimento, naturalmente,..