Porto Seguro, 1930- 1941.
Leonardo sempre achou, e testemunhou perante amigos e outros circunstantes postos ao longo da linha do seu destino, que nasceu no dia certo e no lugar de um antiquíssimo município, o dia mais auspicioso possível com vista à sua vida futura; nasceu junto da água corrente tal pássaro cujo ninho fosse construído num docel de salgueiros sobre as águas murmurantes e cristalinas a marcá-lo de modo a vir à luz naquele santo dia para sua mãe que foi de parto sem dor em casa perto de moinho cujas mós andadeiras ronronavam sem descanso a embalar os seus primeiros sonhos e a marcar-lhe uma entrada feliz num mundo onírico a encher-lhe a cabeça de ideias mágicas; o dia foi em dia ( 8 de Setembro) igual em que Santa Ana pariu Nossa Senhora da Conceição de cuja devoção a sua mãe, uma católica apostólica romana demasiado intransigente com a orientação dos filhos como tão e tantas vezes adiante se verá, era a mais devota tanto que seu filho fora encomendado em o ano anterior pela festa da Imaculada (8 de Dezembro); porém, Leonardo só depois bastante mais tarde reconheceu que o ano do seu nascimento é que não terá batido certo porque se tivesse sido outro ano de cinquenta anos depois seria hoje um jovem na flor da vida, embora lhe pesasse não poder saber o que hoje sabe por não ter percorrido ainda esse mar de longo, de salsas ondas, cavalgando suas alvas cristas nas imensidades das cerúleas planuras dos mares; foi este ciclo da água junto da qual nasceu que o arrastou para terras tão diversas com a sua profissão (Professor) de dispensar aos outros ideias que de outros recebeu e caldeara com as suas recolhidas em escolas um tanto antagónicas mas sem radicalidades assim tão diferenciantes. Esta é a introdução a uma parte do adquirido mundo epistemológico de Leonardo traduzido em sua breve epistolografia amorosa um tipo de comunicação arcaica que já foi ameaçada de cair definitivamente em desuso e é a causa dos seus queixumes de não ver quase ninguém a manuscrever a tinta senão quase só os obrigatórios testes dos currículos escolares por troca de outra comunicação que perdeu a pena e digitaliza uma espécie semiótica sincopada e bastarda em letras que o vento leva dos pequenos écrans dos telemóveis.
Porto do Mar, 1941- 1944
Leonardo, verdadeiramente, ao sair da casa dos pais pela primeira vez durante períodos mais ou menos prolongados iria perder o calor do seu seio paternal onde sempre estivera rodeado por familiares de colegas da escola primária e de pessoas residentes num território com um perímetro circular de vinte quilómetros de raio; iria certamente beneficiar com a troca no novo lugar, mas a princípio sentiu-se asfixiado apesar do ambiente de clausura ser de elevada qualidade moral e intelectual formado por novos colegas e seus professores; ali a vida era feita de horas, dias, semanas, meses e anos dentro de um rectângulo territorial com base de cento e cinquenta metros e de altura cinquenta metros onde estavam implantados três edifícios em forma de paralelepípedos os quais um dia foram de uma escola precursora da escola nova em Portugal: neles se dormia, comia, rezava, ria; sua formação académica que mais parecia própria de uma cidade-estado religiosa e ali os dias só eram diferentes quando todos os alunos iam de férias escolares.
Porto do Mondego, 1944 -1948
Leonardo ao mudar-se para interno num novo mas semelhante claustro, iria outra vez perder algo que lá, em Porto do Mar, como aluno ganhara; porém, era-lhe exigido que continuasse a sua formação académica desigual à dos jovens em escolas laicas na cidade onde se ministrava o valoroso ofício de Minerva (Universidade de Coimbra); na razão inversa de uma crescente intelectualização, a vida enchia-lhe a cabeça de uma feira de cepticismos sobre se seria aquele o tempo certo para estar naquele lugar e dali foi um passo para pensar se o sítio certo não estaria ali à mão fora daquela cidade claustral de cepticismos formada por uma mole imensa de pedra povoada de almas de vidas intensamente religiosas rodeada por duas construções em forma de paralelepípedos barrocos todas cercadas por um pesado portão de ferro que só era franqueado quando se ia às Liturgias da Sé Nova, ao médico (dentista ou oftalmologista) ou de férias, três vezes ao ano .
Coimbra 1948 -1950
Leonardo, enquanto interno, já começara há tempos a perder muito do lado gostoso dum período intensamente formativo que voluntariamente interrompeu porque se convenceu que persistir em tentar viver definitivamente aquele tipo de vida seria tremendo equívoco porque a razão de ser não era justificável a seus olhos; ao cair em si viu que tudo academicamente falando não valia oficialmente nada cá fora no Liceu; ficara apenas com o que tinha levado para iniciar aquela carreira académica enclausurado; isto é, no fim da adolescência tinha apenas a quarta classe e sentia-se com poucos motivos de esperança para tentar obter com novos exames a necessária equivalência aos currículos escolares oficiais vistas as disponibilidades financeiras de seus pais que tinham mais filhos para educar e eram resultantes de meios e recursos certos e indispensáveis ao desafogo familiar; porém, Deus providebit : a primeira coisa que lhe ocorreu depois de se livrar dos hábitos talares de cor negra foi comprar uma farpela nova de cor discretamente garrida para contrastar com a sua primitiva roupa de clausura da qual só guardou as calças e o colete; o casaco trocou-o numa casa de adelo da rua das Figueirinhas por uma batina que de acordo com a praxe teria de lhe chegar abaixo dos joelhos o que não foi fácil de conseguir e com a capa que já possuía permitiu vestir-se de estudante da academia regida como se sabe pelo Palito Métrico; o chapéu negro debruado de copa vincada trocou-o por um barrete e um cachecol para se resguardar das frias guieiras que sopravam no canal (Baixa de Coimbra ) onde passava horas contemplando as colegas fugidias que antes desconhecia; foi um tempo extremamente complexo e de certa desorientação, porém ciente de que “uma acha fora da fogueira se apaga” concordou com a sua benévola senhoria frequentar embora menos assíduo a igreja da Sé Velha onde se baptizara e iniciara a sua vida de cristão ;a cada amuo daquela mesma senhora que lhe cerrava porta depois da meia noite ,ia dormir a casa de seu primo Vagem alcunha merecida pelo facto deste seu colega ser muito alto muito magrinho e levemente curvado e outros mais sítios nocturnos disponíveis, como no Tovim de Cima ,em casa do “Dr Enteléquias” ,um cordial professor de filosofia, casado com a prima Olívia ou quando os amuos eram demais ia à Estação Nova tirar um bilhete de primeira classe para Bencanta e passar a noite na Sala de Espera que no inverno era aquecida ; na realidade , postergados que foram os rigores de um estatuto rígido do Curso de Humanidades Canónicas adere a medo à descuidada praxe coimbrã cheia de comportamentos tão aleatórios quantos os dias descuidados o eram e o faziam sentir de início que acabara de se juntar a um grande grupo de malucos que tinham tomado conta do hospício inteiro, isto é, das repúblicas onde Leonardo tanto ansiava por debutar ,não fosse a mão férrea duma sua tia que lhe facultara benevolamente os estudos e com a qual tentava a todo o custo evitar confrontos, sobretudo, devido encontros na rua nas horas de aulas ; não fosse ela pregar-lhe sermões de duvidoso efeito tantos que com eles se poderiam encher mais páginas do que as que Vieira escreveu, se Leonardo não os ignorasse sistematicamente ;mas se adregava de passar por ruas por si consideradas erradamente de sentido único para aceder aos habituais cenários de uma vida boémia lhe surgisse inopinadamente em contra-mão a sua protectora, o seu anjo terrestre, logo havia que disparar uma boa desculpa como a que ali estava de passagem a caminho de uma igreja na Baixa para se confessar, uma prática obrigatória para manter os bons costumes e que não faziam mal a ninguém; e aceite tal justificação havia de se confessar daquele pecado de desobediência e fazer a promessa sagrada de não insistir em tender para a boémia que apesar de ser uma falta simples poderia acarretar problemas de natureza irremediável como o corte da mesada e com ela se esfumar aquele bem-bom que era uma vida académica sem preocupações de estudo uma vez que tinha preparação suficiente para se submeter aos exames curriculares de equivalência aos currículos oficiais .Leonardo levou os dois anos escolares extra-muros ao fim sem preocupações de maior já que pouso e comida não lhe faltaram, apesar dos ameaços constantes e alguns eminentes sustos por culpa sua, porque em vez de fazer um percurso académico de acordo com o que lhe era exigido, numa espécie de linha férrea, aproveitava sempre as oportunidades de tentação do demónio de sair dos carris de uma via tão estreita que era impossível não haver descarrilamentos e desastres, aliás sempre benignos visto que felizmente nunca lhe foram fatais, até porque a virgindade bissexual pré-nupcial, naqueles tempos era tão natural(?) e cem por centro eficiente contra as consequências da promiscuidade sexual que podiam ser fatais; mas todas as formas são recipientes que se enchem e no fim do segundo ano por esforços comportamentais mais de natureza formal Leonardo começou a pensar que aquela não era a vida onde tinha mergulhado feliz e descuidado, mas inconsistentemente durante a qual foi desfrutando de uma aparente felicidade de rir, bailar, ironizar e disfarçar nos intervalos daquela vida que uma pessoa com um estatuto social tão pressionadamente dependente como o seu, teria de suportar quantas vezes assobiando para o ar; fôra a sua estrela da sorte que um dia ao terminar a Escola Primária lhe ofereceu a saída de Porto Seguro (casa paterna, na vila) por uma porta da vida deixada aberta por descuido calculista do seu destino ao qual não lhe terá parecido bem que Leonardo ali permanecesse em terreno culturalmente mal amanhado por ser de natureza demasiado pedregoso; quase ciclicamente lhe era dada uma alternativa de franquear a enorme porta de acesso a outra vida sem a fazer ranger nos seus enormes gonzos para tão acordar as cabeças cheias de pré-juízos a seu respeito como de que não devia ter saído dali para ir estudar, que sua família não tinha assim tão elevado nível económico para o aguentar e além disso porque quando ele soubesse outras coisas novas abandonaria o destino que seus pais tinham traçado e aos outros seus sete irmãos; e o tempo passou até ao meados do mês quinto (Maio) do ano e então fechou-se um ciclo de sete anos de reclusão na zona urbana fortemente preenchida pelos estudos e Leonardo estava de volta à cidade exterior com a cabeça cheia de sonhos trazendo na mão a velha mala do enxoval prenha de vestes talares reduzidas a insignificâncias inoportunas de fatos negros mas com vista para um imenso vazio de futuros imediatos; ao tempo dizia-se que o que agora não é, mas amanhã será e chegaria o tempo da oportunidade da reconstrução de projectos novos de sonhos antigos dependendo de circunstância reguláveis pelos recursos mínimos disponibilizados de uma vontade clara e persistente de opções ponderadas tudo dentro de um coração vibrante fortemente ligado a uma cabeça limpa cujo QI seria de pelo menos, haviam-lhe dito várias vezes, um pouco acima dos cento e quarenta e, na circunstância, aliado a um carácter emotivo e isento de qualquer complexo ou remorso de se ver obrigado a sair daquele primitivo Porto Soar, que lhe parecia destinado a confinar-lhe a vida desde o nascimento até ao fim da adolescência, e de ter partido para Porto Fino a encontrar a jovem e bela morena para juntarem seus destinos e não se ter afastado de Coimbra antes trazê-la para juntos usufruírem da mais ardentes e honestas vivências de colegas e namorados enquanto preparavam seus cursos para ,ao fim de belíssimos encontros nos encantos e recantos da cidade dos amores, saírem ambos de preferência para Porto Fino ;ela com o curso da Escola Agrícola e ele com a licenciatura que lhe dava a oportunidade de uma profissão brilhante; felizmente aquelas aparentes aporias de natureza familiar iniciais que fizeram perigar o namoro acabaram por ser ultrapassadas; ele era estudante de outro meio que não o da sua amada e ela era evangélica que não era a religião dele; apesar de jovem ela era muito convicta e crente a ponto de emitir argumentos habilidosos tirados da Bíblia numa directa discussão que ele tendo passado durante sete anos em conhecimentos da religião antagónica, não deixava de mostrar alguma insegurança de si próprio, das suas convicções; mas a vida de Leonardo é a de muitos outros Leonardos que em crianças um pouco inconscientes entram para os claustros onde alguns deles por vezes tiveram de enfrentar umas tempestades que em aqueles lugares se continuam a desencadear sobre as mais variadas formas, dúvidas sobre a vocação de ministro de religião, sobre o sentido da vida, sobre as mais-valias de viver num mundo extra-muros, etc.; tal situação tem sido tema de escritores alguns dos quais lá passaram e cujos dramas muitos conseguiram ultrapassar dificilmente e outros fracassaram e ainda alguns venceram com facilidade como Leonardo, como se pode ver no conteúdo das cartas trocadas com a Ana Rita cheias de pormenores de grande sensibilidade e interesse pelo essencial da vida em prosa simples rasa mas directa; seus outros assuntos amorosos mais íntimos não foram registados em cartas porque esses tratavam-nos eles quando juntos passeavam no intervalo das aulas e dos estudos em alguns recantos de Coimbra cheia de luz e sonhos ou em férias na aldeia quieta e serena da sua amada ,
Porto Seguro, 1950
Leonardo de regresso de férias grandes à casa paterna onde fora relativamente feliz, de repente sentiu nele uma saudade imensa daquelas circunstâncias de criança: de assistir a coisas tão despiciendas como a de escolher da ninhada o cachorrinho que havia de sobreviver com sacrifício da vida dos outros e também, assistir ao drama da selecção das cabrinhas que às vezes ajudava a apascentar ao longo dos caminhos para se alimentarem de silvas e de folhas de salgueiros cujo ciclo de reprodução as podia condenar a afastar-se de si ou a manter-se; o problema era que as cabras do pequeno rebanho cujos úberes eram os frigoríficos de então onde se guardava o leite para o pequeno almoço dizia seu pai tinham de parir desencontradas para nunca faltar o leite que se bebia com o café naqueles tempos; nadar no rio até à exaustão e depois subir à figueira para comer os figos com boroa e partilhar essa boroa com as crianças que nuas eram todas iguais nem eram ricos nem pobres, mas no fundo eram crianças cujas famílias durante a guerra se sentavam diariamente à “mesa da fome” a partilharem pouco mais que o tradicional prato de “batatas com bacalhau à Salazar”, quer dizer só batatas; por isso, ainda não lhe garantiam nem a alimentação suficiente nem uma vida de estudo para as preparar para o futuro; eram todos iguais e todos comiam os figos que Leonardo felizmente podia e distribuía por eles; de vez em quando na vila e no lar haver vários despautérios ligados directa ou indirectamente aquilo que se podia chamar sexàferes do seu progenitor. Leonardo ia todos os dias em férias com os seus colegas alguns destes datavam do início da escola à estação de camionagem esperar os autocarros para ver quem chegava e quem partia; estes passeios eram de tal forma tão banalizados que se houvesse pessoas que lhes perguntassem se tinham visto chegar algum familiar seu ninguém sabia responder com a certeza de cem por cento visto tal era a rotina simplesmente feita para matar o tempo de férias em que não acontecia nada de novo que merecesse algum interesse; mas havia sempre algo que poderia suceder, inopinadamente, e foi no cair numa destas tardes mornas de agosto quente no lugar certo a horas certas surgiu um casal de alienígenas que a todos favoravelmente impressionou mas totalmente desconhecido nas rotinas das chegadas e das partidas dos buses que eram lentos fumarentos e feios; naquele tempo pós-guerra segunda a grande, andava-se em estado deprimente não fossem as festas de ano das aldeias que até recebiam forasteiros para as mesas fartas que só nesses dias os familiares residentes arranjavam para festejar o Santo ou a Santa da sua devoção; averiguar o destino daquele casal muito jovem acompanhado de duas filhas muito jovens ainda, foi o objectivo de Leonardo logo ali marcado; eram as cinco horas da tarde quando os pais e as duas filhas tomaram o clássico Ford modelo A que os levou dali para a sede de uma pequena freguesia rural que não distava mais de duas léguas e à medida que os metais prateados do automóvel deixavam de brilhar ao sol poente e se iam afastando da vista, Leonardo de imediato tentou entrar em contacto pelo telefone com uma jovem daquela povoação sua conhecida porque seus pais, além de amigos, eram comerciantes na mesma praça onde lhes dava a oportunidade de conviverem quando os negócios serviam de excelente aproximação de famílias; e... veja-se o acaso , não é que lhe surgiu logo no primeiro contacto a pessoa indicada para explanar tudo o que pretendia saber, era uma jovem morena prima das meninas visitantes já que suas mães eram irmãs ;logo esta começou a discorrer sem enfado e até gostosamente que seus tios de quem gostava muito estavam numa cidade distante porque sua tia casara com seu tio não natural dali pois pertencia a uma família de classe da pequena burguesia rural nos arredores dessa cidade (Porto Fino) e cuja família de várias gerações fazia a criação de gado cavalar e muar destinada aos concursos do Ministério do Exército para fornecimento de montadas e de animais para equipar as unidades hipomóveis dos vários quartéis da região que estavam ainda longe de vir a serem motorizados; que o que mais a espantava era o ar decidido e a desenvoltura daquelas duas primas meninas extremamente inteligentes e boas alunas do liceu andavam de bicicleta e montavam a cavalo , não como sua avó ou sua mãe com sela própria de senhora que usavam para acompanhar o seu avô e seu pai nos vários concursos em feiras de gado cavalar nas redondezas, mas pelo contrário vestidas de saias-calças e botas número trinta e oito feitas de atanado montavam nas selas à amazonas e havia desafios entre irmãs para corridas hípicas que por vezes as faziam correr riscos porque não era próprio de meninas tão jovens desgostarem do trote de cavalo e a todo o momento corriam de galope o mais rápido possível que lhes permitisse aproveitar as brisas fortes que sopravam nos campos lagunares de modo a que seus belos cabelos se levantassem tão alto como as longas crinas de seus cavalos; que lá perigoso era mas que gostoso seria demais para as manas; face a estas correrias a prima, disse, arrepiava-se quando assistia a elas à beira dos caminhos ; chegou a ser também desafiada quando lhe ofereceram igual oportunidade de voar garantindo-lhe que a égua que para ela aparelhavam era a mais mansa de todas; era diferente das outras porque chegada a hora de parir abalava dos campos extensos onde estava com as outras em regime de semi-estabulação e dirigia-se sozinha para casa percutindo o grande portão de ferro da entrada da propriedade relinchava de tal modo que qualquer dos criados da família ou estranho que estivesse disponível ia abrir o pesado portão e deixá-la passar para o barracão da maternidade onde paria sozinha sem maçar ninguém e chegado o tempo chamava de novo os criados que a deixassem ir de volta sozinha com seu potro para junto das outras éguas; a prima disse mais que o desafogo dos pais permitiam às irmãs uma vida de nível muito agradável só que a mãe que era uma pessoa exigente e austera convertida à igreja anglicana exigia-lhes que seguissem uma educação religiosa que não ia muito com os seus feitios; quando as filhas chegaram aos dez anos davam sinais de um crescimento precoce de modo que no momento em que tiraram o bilhete de identidade para admissão ao liceu ambas tinham um metro e quarenta e seis de altura; aos quinze anos destacaram-se das outras meninas da escola dominical e então começaram a recusar-se a participar demasiadamente naquele nível forçado de convívio que não tinha nada para lhes oferecer face ao desenvolvimento psicossomático; nas férias preferiam ter outras actividades que fossem mais a seu carácter um pouco independente pois já se mostravam desinteressadas do uso da farda do colégio porque já não lhe agradavam mais nem aqueles soquetes brancos nem os sapatos rasos nem as saias pregueadas e o casaco azul sobre blusa branca nem os cabelos metidos dentro de um boné de menina, eram adereços que deixavam de apreciar; esta rebeldia começou a preocupar a mãe que o pai esse achava que o que as filhas faziam era natural; a seu pedido, várias vezes por semana, o pai levava-as para a grande casa do avô onde contactavam com a natureza e se sentiam felizes e despreocupadas, isto só enquanto as férias durassem; o regresso à cidade era necessário e voltar ao império da mãe era incontornável por demasiado metida nos passos das filhas; como era o nome da sua prima morena, a mais nova, era a pergunta muitas vezes repetida por Leonardo durante o diálogo, mas nunca tinha ouvido resposta, até que a conversa chegou ao ponto em que a prima combinou com Leonardo que levaria as duas irmãs ao baile da festa anual que ali trouxera os seus tios convidados para matar saudades daquela terra natural de sua mãe; o baile seria ao ar livre às nove da noite e a prima mais nova morena, bela ,esguia e bem apessoada chamava-se Ana Rita, finalmente! Leonardo embevecido e farto de tanto esperar despediu-se depressa e pousou o telefone não quis saber sobre outros mais pormenores e no dia seguinte iria a uma dessas ditas festas de Santo com iguarias para as quais mais que comer cabia a importância de bailar no terreiro habitualmente em largo de terra batida ao som de um conjunto de músicos de palheta, acordeão e bateria que exerciam a sua performance com forte tendência para tocar melodias extremadas o swing e o tango a desencadearem uma animação onde preponderavam os casais de namorados cercados de uma roda humana de “paus-de-cabeleira”, não fossem as filhas exagerar nas primeiras abordagens aos infindáveis mistérios dos corpos emocionados pelos contactos corporais só tolerados em bailes à frente de toda a gente aos quais na maioria assistiam as mães a esta básica e popular iniciação sexual dos seus filhos e filhas. Para Leonardo a circunstância de um simples baile emendou-lhe provavelmente o destino e deu-lhe oportunidade de ser feliz; todo o ser humano é incompleto havendo pois a tendência natural a partir da juventude para que o homem e a mulher se complementarem reciprocamente, este foi sempre o pensamento de Leonardo que não se impeça nunca a recíproca humana abordagem honesta legítima e terna dos corpos de homem e de mulher territórios onde ambos se salvam e nunca se perdem nos ardentes caminhos para o céu, quiçá para cooperarem com o Deus da criação da humanidade; talvez tenha sido neste baile que houve oportunidade de dois seres humanos colegas e estudantes escolherem seus complementos para uma vida em conjunto começando a partir deste baile de burgo uma intensa troca de cartas amorosas de Leonardo com a sua Ana, à moda típica daqueles tempos do pós-guerra que mais tarde passariam a merecer o registo numa crestomatia arcaica, isto é, uma selecção crítica de escritos significativos do passado com recurso ao arquivo morto das longas dezenas escritas tanto por Leonardo como por Ana Rita e que foram rasgadas quase todas, menos as que combinaram guardar das trocadas entre si e que fossem as mais significativas para o desfecho feliz do casamento após vividos cerca de seis anos deliciosos quase quatro de estudantes com êxito nesta Coimbra que saudosa os prendeu mas sempre guardada nos corações românticos dos que namorando tiraram ao mesmo tempo um curso superior de ciências matemáticas do amor no qual os binómios são sempre trinómios que de Coimbra a cumplicidade é o termo terceiro ou em geométricas falas melhor dizendo só existem aqui triângulos eternos e amorosos já que os namorados estão ligados a um terceiro ponto que é Coimbra cujo efeito ou defeito é carregar para sempre de saudade simbiótica os que nela um dia foram estudantes e se namoraram; haverá que ressalvar sempre que qualquer que seja ou tenha sido ao longo de centenas de anos o arquétipo de Estudante de Coimbra ele aplica-se a homens e a mulheres que por ele sendo todos iguais são todos diferentes como indivíduos com as origens diferentes de famílias também diferentes e de condições físicas e anímicas variáveis com ambições e capacidades de adaptação e de superação de problemas de relação mais díspares com valores morais e políticos próprios com trajectos de vida que divergem qualidades pessoais incomuns, etc. A exemplificar Leonardo e Ana são os Estudantes de Coimbra que a partilharam com tantos outros, alguns aqui referidos, também, no seu tempo.